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LITTERATURA E BELLAS-ARTES

CORTE REAL

SEMPRE-NOIVA

Chronica eborense

(Continuado de paginas 45)

VIII

A PESTE

Ouvem-se tristes choros femininos,
Gemidos miseraveis de innocentes,
Desconsoladas vozes affligidas
Soam....

- Naufragio de Sepulveda, cant. XIV

A tarde terminava soturna e triste. Os clarões sinistros dos relampagos diluiam de espaço a espaço a côr terrena e feia das nuvens que toldavam o ceu. O vento de sudoeste, morno e rapido, revolvia-se em redemoinho nas praças e zunia susurrante nos passos estreitos das ruas e nos angulos salientes dos edificios. O trovão ribombava ao longe, surdo e prolongado, e os milhafres, esvoaçando em volta das torres, soltavam gritos agudos e estridentes. O cariz da atmosphera e esses ruidos varios, porém todos pavorosos, augmentavam a tristeza e o susto que tinham causado na cidade os primeiros rebates de peste.

razoada e muitas vezes um novo mal accrescentado áquelle que se pretende remediar. Assim aconteceu em Evora no mez de setembro de 1507.

Nesse tempo, como hoje, quasi todas as portas debaixo da arcada da praça eram de lojas de mercadores. Não longe do sitio, onde estava o pelourinho, havia duas contiguas, uma de pannos de linho e algodão, outra de pannos de côr. Os dois mercadores visinhos, Miguel Saminho e João Barbuda, a quem pertenciam, eram e tinham sido sempre amigos sinceros, o que a diversidade de suas mercadorias fazia possivel.

Tristes e afflictos, em frente das lojas silenciosas e desertas, se queixavam da dureza da sorte que os perseguia, enviando-lhes pela terceira vez a peste, inimigo terrivel que, além de ameaçar-lhes a existencia, lhes dava golpes mortaes no commercio de que viviam.

Estavam tambem juncto d'elles, e com elles se lamentavam, o conego Bastião Lameira e Christovão Rodrigues Acenheiro.

Valha-nos Nossa Senhora do Anjo! Exclamava o Miguel Saminho.

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- E o Senhor São Braz do Rocio! Dizia o conego Bastião Lameira.

-E São Manços, o bem-aventurado patrono da cidade! Dizia João Barbuda.

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E discipulo do apostolo São Thiago, e primeiro bispo d'esta Sé! Concluiu o Acenheiro, manifestando já a esse tempo quanto se avantajaria mais tarde naquella especie de erudição, que havia de transformar a historia portugueza em devoto e vistoso estendal de lendas e maravilhas.

A rua da Sellaria, sobre tudo, por muito visinha do logar em que a epidemia apparecera, estava medonha e lugubre. As portas e janellas fechadas em muitas casas denotavam a fuga recente dos moradores. Das que não haviam sido ainda abandonadas sahiam choros e prantos. O velho e a criança, que procedem conformes nas alegrias e nas tristezasmaiores, perguntavam lacrymosos onde se abrigariam. As mães oravam apertando os filhinhos aos peitos. A esposa abraçava-se ao marido, como para mostrar ao ceu a crueldade da separação.

Fumegavam ainda as cinzas do grande incendio de peste que nos dois annos antecedentes se ateara em Evora. Fôra horrivel a mortandade dentro e até para além dos muros, nos campos, aonde fugiram muitos dos moradores. De fresco estava a memoria de scenas tão calamitosas, para que não houvesse um geral e justificado receio de que se repetissem ao cabo de alguns mezes de curta interrupção. A grandeza do mal fazia grande o

temor.

Em casos de perigo commum o povo acceita com facilidade qualquer alvitre que pareça remedio, embora seja realmente coisa desar

Que ha de ser de nós! Tornou o Barbuda. Hi temos outra vez a pestenença! E É o terceiro anno que vem sobre a cidade; e agora será total a nossa ruina.

Arruinado já eu estou! Disse Miguel Saminho. Ha dois annos que morreram da peste alguns dos meus devedores, outros no anno passado, e os poucos que restam não escaparão por certo d'este anno. Vão-se-me todos com as dividas para os quintos infernos, e deixam-me nas garras dos onzeneiros, que não aferram menos que as do demonio que os atormente!

-Que fazeis, sãr. Miguel Saminho! Advertiu o conego Bastião Lameira. Assim provocais com vossas palavras a colera divina, quando só deverieis implorar misericordia?

Resignemo-nos, disse João Barbuda; deixemos os mortos em paz e oremos pelos vivos. -Tendes razão, replicou Miguel Saminho.

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Deveria supplicar em vez de praguejar. Mas vossa mercê, sir. conego, não está, como eu, em risco de morrer de fome, se escapar da peste. E vós, amigo Barbuda, ainda um d'estes dias recebestes pannos de Castella e d'Aragão. A minha desgraça chegou a ponto de não poder pagar ao almocreve do Pedrogão as têas de linho que me trazia e que já me não quiz deixar fiadas.

Não me invejeis a sorte, que não é muito melhor que a vossa. Disse João Barbuda. Ora olhae para os meus almarios! Onde antes brilhavam os ricos pannos do Levante, os damascos e velludos, não vedes hoje senão londres e solias. Como hei de comprar outros de mor preço? Acabaremos a pedir esmola, amigo Saminho!

-E eu em vossa companhia! Disse o Acenheiro. As audiencias fechar-se-ão outra vez neste anno. Sem o trabalho de que vivo, morrerei de fome.

-Não desespereis, gente de pouca fé! Exclamou Bastião Lameira. Não faltou o manná aos hebreus. Jonas esteve tres dias no ventre da baleia e não morreu. O corvo sustentou a S. João no deserto. Tudo isto me anima...

-E os grossos reditos da vossa prebenda. Acudiu João Barbuda. Se, em vez de confiar nos milagres do ceu no tempo em que não lhe merecemos senão castigos, descobrisseis modo de obstar ao mal... de salvar a cidade de flagello...

-Que nós o não achemos, disse Miguel Saminho, coisa é que se não estranha. Mas vós, sur. conego, vós, sir. bachiler, que andastes ambos nos estudos e que sabeis tanta coisa, não terdes outro meio de nos tirar do nosso desespero, senão a lembrança de milagres que já hoje se não repetem...

-Por mim responderei, disse o Acenheiro, que tivesse eu a governança da cidade, que a peste não sahiria da travessa de Burgos, onde está.

- Como!? Exclamaram o conego e os mercadores, maravilhados da profunda convicção com que fallara o procurador.

-O remedio é simples, proseguiu este. Em se, tapando a travessa...

-A la fé! Que fallais como quem sabe de açôr. Exclamou João Barbuda. Em se ta pando a travessa, a peste não se communicará á cidade.

E não me ter ainda occorrido essa idea!

Nem a mim! Disse o Saminho. -Nem a ninguem! Bradou vaidoso o Acenheiro. O achado é meu e só meu, porque sei mais do que todos. Tenho estudado muito e posso gloriar-me de conhecer as causas das coisas. Rerum cognoscere causas!

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- Mas se o remedio é tão facil, porque se não ha de applicar já e sem tardança? Per

guntou João Barbuda, e çontinuando: O tempo é precioso... Vamos pedir ao governador da cidade...

-Que pensais vós, homem simples e credulo! Advertiu o bacharel com a superioridade que tão frisantemente acabara de provar. O governador ouvirá el-rei. Sua alteza ouvirá o conselho e os physicos. Estes ouvirão os astros, que só tarde, passados talvez dias ou semanas, responderão com alguma conjuncção favoravel. Entretanto, a peste estender-se-á pela cidade....

-A descoberta do sñr. bachiler honra-o como ao maior sabio do mundo. Disse o conego por lisonjear ao Acenheiro, cuja popularidade, já grande, augmentaria de certo com este maravilhoso invento. Não percais o tempo em vãos discursos. Prescindi de todas as formalidades. In extremis extrema. Vêdes a praça cheia de povo tomado de susto e desesperação. Bastará fallar-lhes para os resolver a emprehender a obra e a concluil-a em poucos minutos.

Pardeus! Tivestes uma idea de que eu proprio me ufanaria! Exclamou o Acenheiro, correspondendo ao comprimento do conego. Fallae a essa gente, que vos fio que logo vos seguirão. Entretanto irei cá por outra parte d'onde espero mandar-vos bons auxiliares.

-E eu acompanhar-vos-ei, disse o conego. Christovão Rodrigues Acenheiro e Bastião Lameira retiraram-se prudentemente para esperar em casa o resultado da empresa. João Barbuda observou com certa desconfiança: não fallam elles? porque

Mas

- Fallarei eu, disse mais confiado Miguel Saminho, que via já sobre si as garras dos onzeneiros, e após a miseria e a fome. E dirigiu-se aos grupos que estacionavam pela praça, entre os quaes ajuntou sem difficuldade mais de trinta pessoas que o seguiram. Dois carpinteiros, que moravam perto, prestaram as madeiras e os instrumentos necessarios para a obra, e todos se encaminharam ao largo de São Thiago e á rua da Sellaria a fim de tapar de uma e de outra parte a travessa empestada. Alguns iam cantando com voz lugubre:

Sobre nós está da peste
O perigo.
Senhor, porque nos deste
Tal castigo!

Attendei camanha dor,
Virgem madre!
Misericordia, Senhor!
Nosso padre!

Dobram sinos a finados

Tlão, tlem, tlão!
Morrem nobres empestados
Tlem, tlem, tlão!

Inda morrem mais dos pobres
Tlim, tlem, tlim!
Não se calam tantos dobres
Tlem, tlem, tlim!

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Ao passo que repetiam estes e outros cantares que se tinham vulgarisado nos annos precedentes, levantavam os tapigos de madeira nas boccas da travessa. Era horrivel de ver e ouvir esta obra insana. Trabalhavam todos torvos, carrancudos, ameaçadores. Ao canto funebre, ás martelladas estrondosas, ao ranger e estalar da madeira respondiam das casas inficcionadas ais e gemidos. Quando estes recresciam, redobravam de actividade os brutos executores d'aquella barbara medicina. Uma mulher sahiu de casa do alfageme. Vinha tão consternada que não deu pelo que fazia a turba senão a poucos passos de distancia. Era Martha Gil.

-Anda atraz! Anda atraz! Empestada! Gritou um. Por aqui não sahe viv'alma!

Porque? perguntou Martha stupefacta. Boa pergunta! Porque está hi a pestenença, e importa que não avance pela cidade. Que fazeis? exclamou Martha Gil, a quem a grandeza do perigo deu forças para não succumbir ante a nova calamidade que se lhe deparava. Quereis que os empestados e os que não o estão morram para ahi, como uns cães, sem o auxilio que de Deus e dos homens devem esperar? Isto não ha de ser. Deixae-me ir chamar um clerigo e um physico. -- Physicos não curam pestes.

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Aqui não entra nem sahe nada. Já o disse. E tu, que talvez já vonhas empestada, retira-te, se não queres que te parta a cabeça com este machado. Morto o sapo, morre a peçonha.

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- Não sabeis de certo, insistiu Martha Gil, que defendia palmo a palmo o terreno, por ver que, terminada aquella obra, toda a esperança seria perdida, não sabeis que a fermosa Paula, a filha do vosso amigo alfageme é uma das empestadas? Que dirá elle e que vos fará quando voltar de Lisboa, constando-lhe a vossa crueldade! Pelo amor de Deus, deixae-me passar.

- Vasco Moniz e a filha valem muito, mas a cidade, mas todos nós valemos mais. Tenham paciencia.

-Ora vedes que eu, uma fraca mulher, não hei medo da peste, e vós que sois homens e valentes receiaes. Por Deus! que isto não

parece de portuguezes, assim como não é de christãos fazerdes o que fazeis.

Um dos trabalhadores ia a arremessar contra Martha um projectil a vêr se este argumento a convencia melhor que as palavras do campanheiro, quando chegaram ao pé do grupo os filhos do bispo de Evora.

Todos se descobriram em signal de respeito, e Miguel Saminho disse a D. Francisco:

- A que vos expondes, senhor! Ignorais, por acaso que anda a peste nesta rua?

-Não: disse D. Francisco. É por isso mesmo que nós viemos. E agora vejo en quão bem obrámos em vir, porque, segundo parece querieis trancar a travessa e deixar ao desam. paro os pobres empestados. Deus Nosso Senhor tal não permittirá. Pois se nos manda primeiro de tudo que o amemos e logo depois ao proximo como a nós mesmos, desobedecer-lhe-emos a ponto de dar tão angustiada morte a gente christã, tractando-a que nem as alimarias que se lançam ao almargem!

-Mas sñr. D. Francisco, replicou o outro, por bem da cidade o fazemos. Soffram embora meia duzia de pessoas e salve-se o resto.

- Attendei que as sacrificaes inutilmente. Podeis por ventura impedir o ar de sahir d'esta rua e de levar a peste a outras partes? Desenganae-vos. Ha de ser o que Deus quizer, e não o que nós queremos.

Porém, as nossas vidas.... as de nossas mulheres e filhos...

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Lembraes-vos de vós e dos vossos, é esqueceis-vos dos que estão soffrendo! Que direito haveis de vos conservardes a preço das vidas e das almas que fareis perder sem os soccorros de que necessitam e que lhes impedis com a vossa obra de contestavel efficacia? Não vos digo que entreis na travessa, e cumpraes para com vossos irmãos os preceitos que Deus vos impõe. Fugi para o campo se tendes medo, mas ao menos deixae o caminho desembaraçado para os que não o têm, para os que a virtude da caridade conduz em auxilio dos infelizes.

O povo tem bom coração e vai de ordinario para o bem quando acha pessoas auctorisadas que o guiem com a voz e com exemplo. Aquelles homens, que havia pouco pareciam inabalaveis em seu proposito, atiraram ao chão as ferramentas de que se serviam.

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- Perdoae-nos, sir. D. Francisco de Portugal, dizia um, não sabiamos o que faziamos. - Pois isto podia lá ser: dizia outro. Exporem-se um gentil-homem e nobres damas por causa de nossos irmãos, e nós fugirmos! Que vergonha! Como dissestes, ha de ser o que Deus quizer. Bem claramente se viu a sua vontade o anno passado no caso das freiras de Santa Monica. Fugiram do convento; algumas arrependeram-se e voltaram a elle. Estas vivem hoje com saude: as outras que temeram de as seguir finaram-se de peste.

Acompanhar-vos-emos ás casas dos en fermos e os levaremos, se quizerdes, para o hospital, disse o que mais se levantara contra Martha Gil.

Esta, por extremo commovida, sem poder dizer uma só palavra, abraçava os joelhos dos filhos do bispo D. Affonso, que se esforçavam por erguel-a do chão.

Num recanto mais escuso, d'onde via e ouvia, sem ser visto, estava um homem extatico. Era Martim Lourenço, que não se fartava de admirar aquelles entes superiores.

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Meu amigo. Estamos em pleno abril. Omnia nunc rident, como diz o nosso mantuano, aquelle amado Virgilio, que eu interpreto mais pelo coração do que com a intelligencia. Terminou finalmente o inverno, e o sol resplandece desassombrado de pardacentas nuvens; resurgem os dias formosos, resurge como a phenix a primavera.

E com effeito podemos dizer que neste mez desperta a natureza. Começa o reinado das flores; rasga a terra o seu seio fecundo, e d'elle brota e multiplica os abundantes thesouros que aproveitam ás necessidades do hoinem. O anno, que nascera frio e inerte, retempera as forças e entra na sua juventude. Principía o trabalho matutino a substituir os compridos serões do inverno. As aves, expatriadas pelo frio para climas mais amenos, regressam agora, e voltam a visitar as nossas regiões floridas, os logares onde no anno preterito construiram seus abrigos, berços dos seus filhinhos.

Março costuma ser ventoso, e dissipa as nuvens hibernaes que escurecem o sol; em abril bosques e prados, collinas e planicies retomam vida, e os ramos nús revestem-se de folhas. O calor vivifica a terra; brisa suave impregna a atmosphera de perfumes, e arvores e plantas germinam espontaneas, preparando para a seguinte estação seus fructos saborosos.mamoru Al

Depois de março segue se naturalmente abril; depois do mez, formoso mas aspero,

que bem semelha o deus da guerra, devia seguir-se-lhe o mez da mãe dos amores, lindo como ella e como ella inconstante.

Convêm à deusa bella os bellos dias,

E juncto ao mez de Marte o mez de Venus 1.

E é exactamente á Venus physica, á força, á virtude productiva, que Deus infundiu na natureza quando a creou, que é consagrado o mez de abril. E nem faltou tambem quem symbolisasse a deusa no planeta mais rutilante que conhecemos, naquella estrella d'alva que precede o dia, como o nome de Lucifer manifesta. E assim como ella, a estrella, é a mensageira lucifera do dia, podemos dizer tambem que abril, o mez de Venus, é o mensageiro da mais bella estação, que se ostenta já coroado dos pennugentos botões de rosa, que são claro indicio da chegada da gentil Flora, de Flora, que antecede a deliciosa Pomona. Nunc formosissimus annus exclamava o poeta, quando em alvoradas de primavera pisava o chão atapetado de boninas, e aspirava a frescura das auras da madrugada, que lhe sacudiam na fronte as orvalhadas plumas.

Declaro-lhe, meu amigo, que eu mesmo, que não queimo incenso no altar das musas, sou então tambem um pouco poeta, e não extranho que a natureza tenha côres e sons inexplicaveis para o vulgo profano, que falem aos olhos e aos ouvidos dos seus predilectos. Agora mesmo, que lhe escrevo ao cantar dos gallos, e já longe da meia noite, á hora das visões e dos duendes, quando acordam os sylphos e as ondinas se espriguiçam á flor das aguas, me entram pela janella aragens balsamicas das margens do Mondego. Não é noite de lua, mas o firmamento azul, cravejado de estrellas, entorna por sobre a terra golfadas de luz baça e amortecida, com a qual a custo enxergo o rio, opulento d'ouro e de esmeraldas, ouro das areias e esmeraldas dos arvoredos. As flores soltam scus perfumes, as mariposas repousam nos calices dos. lyrios, e os zephiros brincões adejam pelos ares. A noite, como se vê, é uma coquete das mais elegantes, que desperdiça nos seus adornos as galas mais donosas, e se sorri prazenteira e graciosissima, ainda para os espiritos mais indifferentes ás seducções da belleza.

Ora, como Morpheu me não roçou ainda pelas palpebras com o seu abanico de papoulas, vou-lhe falar d'uma visinha palreira, que ha dois dias se me installou defronte da casa. É uma andorinha, e o meu amigo bem sabe o que é uma andorinha; não lhe darei portanto prelecção de zoologia, nem sequer lhe apontarei os poetas innumeraveis que a têm cantado, desde Anacreonte e Ovidio até Lafontaine e Lachambeaudie. E ainda seria curiosissimo um estudo minucioso d'estas diversas opiniões

1 Castilho, paraphraseando Ovidio.

e cantares; ver de que modo um lhe descreveu i de uma esphera ôca com um orificio estreito

a vida intima e a criação dos filhos, e outro a tornou filicida, ostentando os signaes eternos do seu crime,

...signataque sanguine pluma est;

e circular, que não excedia o tamanho do corpo da ave. Os novos, porém, em vez da forma espherica têm-n'a semi-oval com as extremidades prolongadas. A entrada, em logar de ser um buraco arredondado como nos an

como este a pinta viajante infatigavel, cheia tigos, é uma fenda comprida, aberta transde instrucção,

... en ses voyages Avait beaucoup appris;

versalmente e de nove a dez sobre uma altura de dois centimetros. Estes ninhos têm a figura da taça antiga, cortada ao meio e applicada á parede, rasgando-se-lhe simplesmente a extremidade para lhe abrir uma entrada. Por conseguinte ha entre os ninhos antigos e modernos das andorinhas differença radical, tanto na configuração como principalmente na abertura.

e como aquelle a chama parasita, amando sómente o raio de sol que a aquece. Ora quando não ha litteratura que lhe não tenha consagrado as melhores das suas paginas, quando a poesia de diversos tempos e nações eternisou em seus carmes este gentil passarinho, que E o novo systema de construcção, que adose ha de accrescentar em seu louvor?... Eptaram estes interessantes passarinhos, é um então agora, em pleno abril, quando o vemos volitando constantemente nos ares, só poderiamos exclamar com o ancião de Téos:

Τί σοι θέλεις ποιήσω, Τί, κωτίλη χελιδον;

Tu andas, certo, a tentar-me Co'o teu palrar, andorinha.

Dir-lhe-ei sómente duas palavras sobre os seus ninhos e progressivos melhoramentos que nelles se têm desenvolvido, porque ha naturalistas que julgam que a estructura e configuração dos ninhos não variam nunca, que cada especie de aves fabrica o seu regulando-se por um modelo especial, que se conserva sempre eterno, perpetuando-se indefinidamente. Esta opinião é com certeza erronea, e o tempo se encarrega de a ir a pouco e pouco desfazendo. A observação, mestra suprema do homem, a tem minado e substituido por outra, mais favoravel á intelligencia dos passarinhos.

Na biologia das aves os habitos mostram-se constantes; não veremos, por exemplo, que as que preferem a sombra e a solidão e abrem habitações subterraneas procurem os cumes das arvores para os seus ninhos. Mas tambem é certo que com os annos aprendem a aperfeiçoar a sua residencia, amoldando-se ás circumstancias e seguindo as inspirações do seu finissimo tacto e admiravel instincto. As mudanças que se realisam na industria e nos costumes das aves verificam-se mais depressa do que geralmente se cuida; e as observações sobre a construcção dos ninhos das andorinhas indicam os melhoramentos notaveis que no presente seculo têm feito na sua edificação.

Diz M. A. Pouchet que os ultimos ninhos que observou differem bastante dos que foram colleccionados ha quarenta annos no museu de Ruão, e que esta revolução architectonica foi uma revolução completa. As descripções antigas dão a estes ninhos a figura da metade

progresso incontestavel; o assento interior sobre que descançam os filhos é mais extenso e proporcionado aos seus movimentos, e não se vêem amontoados uns sobre os outros como antigamente. A entrada do ninho, sendo mais larga, permitte lhes (digamol-o assim) o pôrem-se à janella, alongando as cabecinhas para respirarem o ar puro e se irem familiarisando com os objectos externos. É para elles um verdadeiro parapeito, e a largura é tal, que muitas vezes dois passarinhos junctos não embaraçam a entrada e sahida dos paes, o que seria impossivel com o antigo orificio.

Estas indagações minuciosas são curiosissimas, e parecem provar que a andorinha, sendo companheira inseparavel do homem, o tem imitado, aprendendo com elle a melhorar e aperfeiçoar tambem a sua habitação. Os animaes mais ou menos domesticos resentem-se sempre da civilisação humana; e estes amaveis passarinhos, que nos chegam com os primeiros aromas da primavera, que cohabitam comnosco, sendo tantas vezes victimas innocentes de travessuras infantis, não podiam deixar de se mostrarem tambem nossos discipulos.

Esta doutrina talvez lhe pareça excentrica e inverisimil, mas para mim é muito razoavel. A natureza é sublime sempre, ainda nos seus mysterios mais obscuros, se é que ainda ha mysterios para a intelligencia e sabedoria humanas, pois só a ignorancia tem criado men. tidas visões e phantasmas. Tudo tem razão de ser, e tende ou pelo instincto ou pelo raciocinio para o progresso e gradual aperfeiçoamento. Não é muito que até na andorinha encontremos o impulso que agita a natureza inteira.

Mas a noite tem-se adiantado, o brilho das estrellas empallidece, a alva surge na orla do oriente, e eu ponho termo & minha carta. Adeos.

Coimbra-1870. A. A. DA FONSECA PINTO.

LOTOQUEIMPRENSA DA UNIVERSIDADE

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